Crítica: O Homem Invisível


Aviso: “O Homem Invisível” aborda temas como relacionamentos abusivos – e violentos –, além de violência psicológica e de gênero, desta forma esta crítica também acabará por comentar sobre tais temas. Se eles ofendem ao leitor, ou causam considerável desconforto, recomenda‑se que pare de ler por aqui.

H. G. Wells é considerado um dos pais da ficção científica. Um dos primeiros a escrever romances sobre alienígenas e viagens no tempo. Teve várias de suas obras adaptadas para o cinema, desde o começo do século passado, algumas revolucionárias em suas técnicas de filmagens.

Dentre estas, podemos citar “O Homem Invisível”, romance escrito pelo autor 1987, cuja primeira adaptação compôs a série de filmes de monstros da Universal Pictures a partir dos anos 1930. A obra conta a história de um homem, Griffin, descobre uma fórmula de invisibilidade, e usa-a para alcançar desígnios nefastos. Uma vez percebendo a impunidade que alcança com esta, começa a afundar em atos cada vez mais vis, e até mesmo a planejar um “Reino de Terror” ao redor da Inglaterra.

“O Homem Invisível” (The Invisible Man) é não só um reboot da série de filmes criada pela Universal baseada no conto homônimo, mas também uma releitura trazida a um contexto moderno. No longa, Cecilia Kass (Elisabeth Moss) se vê fugindo de um relacionamento extremamente abusivo com Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen). Coisas estranhas começam a acontecer após o suicídio de Adrian: desde pequenos acidentes domésticos – como uma comida pegando fogo – ou uma coberta caída de maneira improvável, e fazem com que Cecilia não questione só sua sanidade, bem como a própria morte de seu ex.

Após a falha na tentativa de um universo conectado de filmes em 2018, a empresa Universal Pictures acabou por decidir investir em reboots que não sejam ligados, e mais focados na produção autoral. “O Homem Invisível” é o primeiro desta possível série e mostra o acerto do investimento: não só a qualidade do roteiro é alta, bem como da produção, e ainda custando menos que a tentativa de série anterior.

Um dos maiores méritos do filme está em seu roteiro. A trama não é só verossímil, mas reflete uma triste realidade, que é a dos relacionamentos abusivos: o horror se foca não só na real presença do antagonista, mas na tensão psicológica que causa na sua vítima que acredita em algo invisível, mas que não necessariamente está lá – no caso da realidade, esse é um dos sintomas vividos após a libertação de tal relação.

Indo mais além, muito do comentado pela protagonista em relação às ações de Griffin, é um reflexo do vivido por várias mulheres – e ocasionalmente alguns homens (que também compõem uma minoria de vítimas) – cujos agressores aos poucos as isolam de tudo e todos ao redor, controlando-as cada vez mais. Para retratar esse sofrimento, a escolha da atriz foi excelente: Elisabeth Moss demonstra muito bem o declínio psicológico, e eventualmente físico, da vítima deste tipo de relacionamento abusivo, e faz jus a toda experiência de sua carreira.

A produção também é uma marca interessante da carreira do diretor Leigh Whannell.  Este é seu terceiro longa neste posto (escreveu o roteiro para vários outros) . É o que mais conta com seu estilo de terror mais clássico, que acaba enveredando por algo psicológico, e ainda que muito fictício, parece mais próximo à realidade.

A fotografia faz muito bom uso de espaços vazios. Tomadas que mostram grandes espaços com poucos objetos os ocupando, ou até mesmo pequenos cantos nos quais a ausência de algo cria a possível presença de algo invisível. A trilha sonora também encaixa na trama e eleva a tensão a outro nível, no entanto, a ausência de músicas em algumas sequências, é onde o mais assustador mora, em particular no uso dos sons de fundo como substitutos.

Outro ponto interessante, é que das grandes adaptações do livro, é a que mais se mantém fiel ao espírito e moral do original. Enquanto filmes como “O Homem Invisível” (1933), e suas sequências, ou “O Homem sem Sombra” (2000), os comportamentos inconsequentes e violentos provêm de uma possível loucura criada pela forma através da qual os personagens atingem a invisibilidade, o novo filme traz a ideia proveniente do original, na qual a impunidade da invisibilidade faz com que o protagonista – já violento e perigoso – torne-se ainda pior.

Talvez o maior “problema” do filme seja a sua própria qualidade: ao refletir sobre um tema extremamente real, mesmo que de maneira fictícia, com a maestria que o faz, pode tornar-se incômodo para os mais sensíveis, ou pessoas que passaram por esse tipo de situação. Também acaba por reforçar a ideia de que abusadores são sociopatas narcisistas, quando na maioria das vezes são pessoas comuns, que sentiriam empatia por qualquer coisa, menos por sua vítima.

Ainda assim, “O Homem Invisível” é um dos melhores títulos de terror recentes, e talvez se mantenha como melhor deste ano. Não é para quem procura sustos fáceis mas para quem quer um terror perturbador, com bons argumentos para refletir sobre a própria vida.

por Ícaro Marques – especial para CFNotícias

*Filme assistido durante Cabine de Imprensa promovida pela Universal Pictures.