Crítica: “Por trás dos seus olhos”


Por trás dos seus olhos (All I see is you) é um filme sinestésico, de diversas camadas que se enlaçam de forma intrigante. Dirigido por Marc Forster, a história apresenta a vida de Gina (Blake Lively), que perdeu a visão na infância após um acidente de carro. Casada com James (Jason Clarke) e vivendo na Tailândia, a relação é de dependência do marido. Até que ela testa uma nova cirurgia e resgata a visão de um dos olhos. Essa nova vida, aos poucos, abala as estruturas de seu casamento.

O desempenho de Blake Lively, no longa, é ótimo. Toda a transformação da personagem é composta por alterações nos gestos e, principalmente, no olhar. Ela consegue dar vivacidade e realismo à Gina, assim como Jason Clarke está muito bem no papel do típico marido de classe média, um tanto conservador e aparentemente perfeito.

O grande triunfo da obra é na boa configuração entre a direção de Marc Forster e o roteiro de Sean Conway. Para nos apresentar o mundo de Gina, a produção utiliza diversos recursos de imagem, som e distorção das formas a fim de nos situar entre as sensações de uma deficiente visual. O modo com que o filme todo se formula por essas imagens o faz ter sua singularidade. São diversas as vezes que sentimos o incômodo das buzinas dos carros, a intensidade do movimento de pessoas numa multidão, a liberdade da dança e a claustrofobia por estar entre estranhos. As sensações também permeiam a relação do casal principal, quando nos é apresentada a maneira com que Gina sente os estímulos numa relação sexual e como ela percebe seu corpo.

A referência principal do filme é o olho como signo do poder. Ao mesmo tempo em que essa personagem é privada desse sentido, a obra demonstra que ela não deixa de se situar no mundo e destaca a beleza tanto dessa sua reformulação da realidade quanto as decepções e o encanto ao vê-la pelos olhos. Gina encontra uma versão particular do mundo por meio de suas sensações, que muitas vezes são mais profundas e belas do que as impressões que ela presencia ao voltar a enxergar, pois perceber o mundo é ter também um olhar subjetivo.

É possível se emocionar, também, em diversos momentos quando somos postos na mesma posição de presenciar a novidade do mundo. As cores das flores, a textura do tecido do sofá, o olhar profundo de um peixe, a expressão de um cachorro. O filme apresenta as camadas complexas da percepção, em que se tem um olhar particular da vivência no mundo enquanto deficiente, em contraste com o isolamento em uma cultura. Gina se vê diante do desafio de aprender uma nova língua, de encontrar divergências culturais na Tailândia, enquanto também se conecta às pessoas.

Esse aspecto, de ter um mundo particular, se reflete também em uma questão essencial: como somos vistos e o quanto conhecemos uma pessoa. Não é possível afirmar que sabemos tudo sobre alguém. Sempre haverá algo oculto por trás dos olhos. O título brasileiro, “Por trás dos seus olhos” e o original “Tudo o que eu vejo é você” se complementam, pois por toda a vida Gina só teve a percepção do marido sobre ela, e nunca pôde de fato tentar compreender o que havia por trás das intenções dele, o que talvez faria do título original uma escolha mais adequada. Quando passa a ver os outros, Gina tem impressões com as quais comparar o que vê nos olhos do marido. E essa comparação é o que cria uma fissura na relação deles.

Notamos, aos poucos, que o modo com que Gina se vestia era a partir do olhar do marido, que buscava privar os outros da beleza de sua esposa. Colocando-a em vestes longas, casacos, ele a ocultava e também se estabelecia em posição de poder, sendo o único que permitia o que os outros podiam ver de Gina e o que ele queria ver nela. Apesar de cuidar e atender às necessidades de sua esposa, ele se situa na relação como quem sente o privilégio em ser indispensável. Colocando-se desta forma, ele passa a ser especial e um marido exemplar por se dispor a tanto, como se ensaiasse aos olhos dos outros o papel do marido que se sacrifica pelo bem-estar da esposa.

Voltar a enxergar, para Gina, é notar a sua personalidade também pelos olhos dos outros. Ela passa a ver o próprio corpo, a projetar-se pelo olhar do outro: a cicatriz a incomoda, as roupas não condizem com o que ela gosta, com o que ela acha bonito em outras mulheres. Gina passa, então, por um belo processo de redescoberta e retomada de seus desejos e aspirações.

Como casal, ambos lidam com estas mudanças de forma distinta. Não é justo manter uma parceira, aquém do olhar do outro, protegida em uma redoma e colocar-se como o único olhar permitido para aquela pessoa. Quando James se sente impotente, isso respinga nas suas inseguranças masculinas, nas projeções criadas socialmente de que o homem precisa manter o controle da casa e da esposa. Em vez de compreender a dificuldade de se enxergar, adulta, pela primeira vez em um espelho, James se prende tão somente à imagem que ele quis criar de Gina.

Com isso, o longa mostra com muita seriedade e um bom desenvolvimento de roteiro como um casamento não pode anular a singularidade de duas pessoas. Aos poucos o enredo vai ganhando o tom de thriller, com o suspense e a tensão por entre as relações. Presenciamos os pequenos atos cotidianos como se fossem pedrinhas jogadas em um rio, deixando reverberações na superfície. Ao fim, Por trás dos seus olhos é um filme que entrega um roteiro desenvolvido sem a necessidade de explicar as coisas de forma excessiva, com camadas psicanalíticas que merecem reflexões, contando uma história verossímil.

por Marina Franconeti – especial para CFNotícias