Crítica: “Projeto Flórida”


No costume da vida brasileira, quando se completa quinze anos, muitas famílias da classe média ou classe média alta dão de presente aos seus filhos uma viagem para a Disney. Quando já não viajaram várias vezes para o parque em outra ocasião. Entre os americanos, a Disney é ainda mais próxima e ainda mais cotidiana. Sinônimo de lazer e praticamente o quintal onde as crianças mais abonadas brincam, encena o ideário americano com o discurso de que todos os sonhos se realizam. É só desejar bem forte.

É válido afirmar, logo de início, que esse filme recebeu apenas uma indicação ao Oscar, pela performance do ator coadjuvante Willem Dafoe como Bobby, quando na verdade merecia constar também nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz para a pequena Brooklynn Prince, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia. Isso faz pensar como Hollywood ainda precisa abrir os olhos para histórias que contam sobre uma pobreza que pouco se fala por não ser uma versão tão bela dos Estados Unidos.

Diante dessa realidade, em vez de Projeto Flórida (The Florida Project) nos colocar tendo um vislumbre da Disney, nós vivenciamos a infância cheia de brincadeiras simples de Moonee (Brooklynn Prince), uma garotinha que vive com a sua mãe em um hotel bem barato à beira de estrada na Flórida, às portas dos parques. O filme mostra uma vida raramente apresentada como protagonista: uma infância pobre em uma cidade toda adornada para o entretenimento do turista, onde a pobreza não é nada atraente para aqueles que estão de passagem nas férias de verão desejando o escapismo infantil da Disney.

O primeiro ponto que precisa ser dito é que Moonee é uma figura encantadora. Uma criança que lidera as outras, aprontando pelas redondezas do hotel, desbravando um universo próprio. Ela assusta pela atitude duplicada de sua mãe, provocadora e raivosa, cômica e doce. A sua mãe, Halley, é mais uma criança: extremamente jovem, mãe de uma filha pequena, sem dinheiro e sem preocupação com o dia de amanhã. Cada instante ela estende adiando as responsabilidades.

Alguns conflitos ocorrem com o gerente do hotel, o carismático Bobby (Willem Dafoe), o qual dá vida a esse hotel-castelo mágico consertando aqui e ali, mas humanizando esse hotel ao enxergar os dramas dos próprios habitantes. Bobby é quase uma figura divina que circula, que protege e que empurra seus moradores a verem um pouco da verdade que se recusam a aceitar. Ao mesmo tempo em que ele gerencia um hotel em forma do sonhado castelo de princesas, ele precisa mostrar aos moradores que aquele castelo é falso e, que sonhar com uma vida luxuosa, não pertence ao subúrbio de Orlando.

Dirigido por Sean Baker, o filme é uma obra memorável. Daquelas que merecia muito mais destaque entre o público, pois fala conosco de modo sincero. Muitas pessoas irão se identificar com detalhes da vida humilde de Moonee, como lavar o cabelo das Barbies no banho, dividir sorvetes com os amigos, brincar até se sujar, repetir palavrões que os adultos falam, criar laços profundos com outras crianças e, principalmente, não ter dinheiro para comprar um brinquedo baratinho e muito menos uma refeição completa.

No filme, a pequena atriz Brooklynn Price se equipara às grandes atrizes adultas. O espectador pode observar claramente que ela compõe toda a personalidade de Moonee de forma particular, surpreendente para uma criança. A sua performance se soma à extrema qualidade do longa e é muito fácil, durante aquelas horas, dizer que fomos Moonee e que vivemos com ela aquela mesma infância.

Ela faz um excelente trabalho junto aos outros atores mirins. E Bria Vinaite, que interpreta a mãe Halley, é uma presença igualmente poderosa. Ela encarna toda a rebeldia sem causa alguma de uma jovem que não teve oportunidade na vida e que também lava as mãos das responsabilidades que precisa ter, agora, como mãe. A atriz consegue dar camadas muito sutis a sua personagem, de modo que entendemos a sua situação, identificamos o carinho enorme que tem pela filha, sem deixar de ver suas falhas. No fim, mãe e filha são crianças desamparadas. O filme vai acompanhando as explosões que começam de forma cômica para se tornarem cada vez mais sérias. Isso dá um tom perfeito de comédia dramática a Projeto Flórida.

A vantagem da obra é que o roteiro faz bem em não se tornar uma produção moralizante. Pelo contrário, é dando alguns exemplos de vivências que ela nos incita questionamentos. Esse abandono não apenas de crianças, mas de famílias inteiras, tem responsabilidade também do capitalismo que alimenta essa cidade do entretenimento. O que fazer quando a vida não fornece nenhuma oportunidade e a situação já foge do controle de ter apenas “vontade própria” para se obter um trabalho?

Projeto Flórida é despido de cartilhas e mostra como é a situação, na prática, apresentando o poético dessa vivência sem deixar de evidenciar a brutalidade dessa vida. O irônico é que o hotel em que essas várias crianças e suas famílias se hospedam, sem perspectiva de morar em outro lugar, tem a forma de um castelo mágico: com um excessivo tom rosado e colunas simulando fortalezas, essas crianças não possuem nenhuma amarra. Essa fortaleza é frágil, pois pessoas mal intencionadas, o crime, o abandono também existem entre esses muros.

Essa infância sem barreiras, em contato direto com o mundo, tem como imenso contraste os muros da Disney. Esses protegem a ponto de formar outro universo onde não se vê que há outras crianças do outro lado com tão pouco para viver. Mas os muros do Magic Castle de Moonee tampouco é o ideal: a total liberdade de brincar, sem possuir uma formação e uma proteção vinda da família, a deixa à mercê desse mundo que não se importa com ela.

É muito sutil e verdadeiro o tratamento dado, pelo filme, sobre a infância. Projeto Flórida expõe ao mesmo tempo o problema de tornar a criança um mini adulto, abandonando-a à própria sorte, mas também esse culto da infância em forma de parques infantis que isolam a criança da simplicidade das brincadeiras. O trabalho de Sean Baker demonstra que, mesmo nessa vida complexa de Moonee, há muito espaço para uma infância bonita. Porque é uma infância inventiva.

Quando a garota cruza ruas e se senta com a amiga para ver um arco-íris ou uma árvore, ela está enxergando o mundo como o grande espetáculo a sua frente. E ele não é artificial, pertencente a um parque. O mundo está lá para ser tateado e visto. Por isso Moonee diz que gosta muito daquela árvore tombada. É uma árvore única, e não as árvores artificiais duplicadas dos parques. Ela gosta porque mesmo tombada, a árvore continuou a crescer e a se expandir. Não ocorre o mesmo com as tantas crianças invisíveis pelo mundo?

O que uma criança mais precisa, no final das contas, é de proteção e de uma família que veja que ela também pode ter medo de olhar o mundo do lado de fora da fortaleza. Porque, de fato, este não é feito apenas de árvores delicadas ou parques festivos. É um mundo do qual a criança precisa ser protegida, de adultos que usam armas para invadir escolas, de garotas que se prostituem por não ter perspectiva alguma, de crianças que estudam em escolas sem estrutura em casa ou sem uma merenda decente para se sustentar diariamente.

Assim, o longa  é uma obra que vai além e se aloja com força na vida do espectador. Ocupa um dia inteiro de reflexões sobre a sua doçura e a sua coragem em apontar uma vida tão real sem deixar o poético de lado. Por isso, assistir a Projeto Flórida é um grande ato de retornar a infância e ver a pluralidade de infâncias que estão crescendo e se expandindo como troncos persistentes mundo afora, e as quais precisamos entender se estão crescendo de forma saudável ou não.

por Marina Franconeti – especial a CFNotícias